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From the vault - o dia em que conheci Jean Hiraga

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Há vida no arquivo morto. Esta história audiófila ocorreu em 1986, e foi originalmente publicada na revista Imasom. Tantos anos passados, a paixão pelas válvulas e pelas 'cornetas' continua bem viva, não apenas na memória, mas na prática de muitos audiófilos na actualidade. Talvez por isso, há pessoas que se vão da lei da morte libertando: Jean Hiraga é uma delas.

Sonhei que tinha caído no labirinto de uma coluna de corneta e fui depois expulso na enxurrada do som de um timbalão. Acordei estremunhado, sem saber onde estava. No dia anterior, tinha andado a vasculhar em papéis velhos, e dei de caras com uma reportagem de 1986 (?) que publiquei na Imasom sobre as 'Journées de la Haute Fidelité', o audioshow de Paris.

As 'Journées de la Haute Fidelité' eram patrocinadas pela Maison de L'Audiophile e a Nouvelle Revue du Son, de maître Jean Hiraga, que, terminado o horário oficial, se reunia pela calada da noite com os audiófilos fundamentalistas, em autênticas catacumbas para demonstrar amplificadores a válvulas e colunas de corneta:

'Seriam p'ra aí oito horas de uma noite chuvosa. O táxi abandonou-me à minha sorte, num bairro de ruas estreitas e desertas, tipo Bairro Alto. Com a morada escrita num papel amarrotado, fui bater a uma porta de ferro, daquelas com portinhola tipo casa-de-passe ou casino clandestino. Ao ranger da ferrugem, seguiram-se degraus de pedra. 'Onde é que me vim meter?, pensei, 'ainda sou feito aqui, e ninguém sabe onde estou...'.

O sentimento de medo logo se desvaneceu, quando vi o 'sorriso aos pés da escada' de Jean Hiraga, o guru rodeado dos seus fiéis, acolhendo mais um iniciado no Templo do Som: seriam cinquenta os refugiados da ditadura comercial, que poucos anos depois iria conduzir as 'Journées' para a guilhotina. Era o fim do Império Audiófilo na cidade-luz.

Coluna de corneta construída por Jean Hiraga. A foto de má qualidade foi copiada das páginas da Imasom, onde publiquei originalmente esta história audiófila em 1986, agora em versão integral

Coluna de corneta construída por Jean Hiraga. A foto de má qualidade foi copiada das páginas da Imasom, onde publiquei originalmente esta história audiófila em 1986, agora em versão integral

Quando entrei na cave de pedra, lá estavam as enormes 'cornetas', que Jean Hiraga iria utilizar para demonstrar o seu amplificador a válvulas Lectron JH50. E logo associei, na minha mente, o 'caveau' audiófilo às catacumbas de Roma, onde os cristãos se refugiavam para fugir à ira de Nero que, consta, não tinha muito ouvido para a música - e era um poeta sofrível... 

Jean Hiraga, francês de origem japonesa - construtor e crítico de nomeada (Nouvelle Revue du Son), o primeiro a chamar a atenção para as diferenças entre cabos -, falava em surdina, o que, aliado à especificidade técnica do tema, tornava difícil a compreensão para quem, embora dominasse o francês razoavelmente, só conseguira um lugar de recurso lá atrás, no 'piolho' do anfiteatro improvisado.

As colunas eram mastodônticas, negras e feias, compostas por um 'caisson de grave' com dois altifalantes de 15 polegadas, sobre o qual assentava uma estranha 'corneta' retorcida com um altifalante de médio-graves montado exteriormente a meio da garganta. Na boca enorme, tinha uma outra unidade de médios, também 'horn-loaded', acolitada por um tweeter-de-fita. Tanto o filtro divisor como a desarrumação da cablagem estavam à vista, contribuindo para a fealdade da besta.

Ainda hoje as colunas de corneta são o ex-libris do HighEnd, de Munique (Highend 2017)

Ainda hoje as colunas de corneta são o ex-libris do HighEnd, de Munique (Highend 2017)

Percebi, então, a razão do secretismo do 'caveau' clandestino: os presentes eram todos homens, alguns já maduros, e nenhum teria coragem de confrontar a esposa com a possibilidade de algum dia montar 'aquilo' na sala de estar. Por outro lado, se lhes contassem a verdade, elas nunca iriam acreditar que eles tinham passado a noite com 'elas'. Era assim um 'affaire' para manter secreto em nome da felicidade conjugal. E do bem-estar social: os amigos que preferiam os bares, onde 'elas' são de carne e osso, iriam gozá-los no escritório, quando soubessem.

Jean Hiraga pediu silêncio. Ia começar a demonstração. Antes de cada audição, desenhava a carvão a posição relativa onde os 'sons' iriam 'aparecer', numa enorme folha de papel branco, que servia de pano de fundo ao palco sonoro. As colunas tinham uma sensibilidade superior a 106dB e os Lectron JH50 não iriam debitar mais de 5W (15W nos picos), explicou. 

A fonte? Um leitor Philips CD-160. 'Bom, fiz-lhe umas transformaçõezinhas...', confessou Jean Hiraga com a modéstia que o caracteriza. Quais? Não adiantou mais nada...

Ouviu-se um pouco de tudo. Mas, na minha 'retina', ficou gravada para todo o sempre a entrada 'em palco' de Montserrat Caballé, no papel de Tosca, quando descobre que o seu amado tinha sido 'acidentalmente' fuzilado. 'Via-se' o vulto avantajado da Caballé, e sentia-se o ar deslocado pelo seu movimento no palco e a posição exacta em relação ao microfone: o pânico que se segue à surpresa, a dor da confirmação, a raiva da impotência, o desgosto que só a morte pode apaziguar.

Ainda hoje sinto arrepios quando penso nesse momento. E o prazer de o ter vivido.

Nota: voltei a vivê-lo na apresentação das Wamm, na Imacustica-Lisboa, num momento que ficou gravado em vídeo aqui.

Quando as ‘Journées’ acabaram, perdi o contacto com o mestre. Mas em 2009, em Munique, voltei a encontrá-lo: o entusiasmo de Jean Hiraga pelo áudio era o mesmo, tal como o meu, mas, ao contrário de mim, parecia que os anos não passavam por ele…

Nota: o video de má qualidade mostra a apresentação do Jean Hiraga MS 15 Reference Coaxial High Efficiency Monitor System, com tweeters concêntricos de compressão JBL075 (para ambiência traseira). No final, Jean Hiraga sai detrás da cortina, como um mágico que acabou de fazer um truque de ilusionismo, e vem receber os merecidos aplausos junto do público.

Paris12 JeanHiraga

Coluna de corneta construída por Jean Hiraga. A foto de má qualidade foi copiada das páginas da Imasom, onde publiquei originalmente esta história audiófila em 1986, agora em versão integral

Ainda hoje as colunas de corneta são o ex-libris do HighEnd, de Munique (Highend 2017)


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