
Veneza é uma cidade única: há canais no lugar de estradas, barcos no lugar de automóveis, e as pontes pedonais substituem as passadeiras de peões.

Em Veneza, não se morre atropelado, quando muito morre-se afogado. Mas será que isso justifica 15 milhões de turistas por ano?

A sereníssima cidade do Adriático tem a beleza decrépita única dos seus monumentos históricos, igrejas e campanários, admito; além dos famosos canais de água suja e casas com flores na varanda a ameaçar desmoronarem-se.

No hotel de charme onde me hospedei, o soalho rangia à passagem dos hóspedes e, tendo-se com os sinos em má hora conluíado, mantinham-me à noite acordado, numa cama do tempo de Marco Polo, que chorava como o cordame de um junco no mar da minha insónia. O romantismo tem destas coisas...

A Praça de S. Marcos é uma Babel de gente sem destino aparente. Os
privilegiados sentam-se nas esplanadas do Florian e do Lavena, enquanto bebericam champanhe rosé, bebem café e comem bolos e gelados requintados, ao som de música ao vivo. O cacau con panna do Florian é um barrete, o Tartufo affogato in caffé, do Lavena, é uma perdição.

A ousadia fica-nos pelo preço de um jantar em Lisboa. Mas ao menos a música é mesmo ao vivo, sem amplificação! E tocam a pedido: Avril Au Portugal, conhece? E não é que o violinista “de Leste” conhecia!...

Com metade do orçamento, os milhões de visitantes têm melhores condições hoteleiras e mais oferta turística no triângulo Lisboa-Cascais-Sintra. E no entanto preferem acotovelavar-se ali naquela praça, sentados no chão encardido a comer hambúrgueres, ao lado de ciganos romenos de mão estendida, assediados por senegaleses que vendem malas Gucci - eles próprios assediados pela polícia, os senegaleses, não os pedintes, que são controlados pelas máfias - ou fazendo filas intermináveis para entrar na Basílica de S. Marcos, subir à Torre ou visitar o Palácio dos Doges para ver os tectos sumptuosos.

Apetecia-me abordá-los um a um e perguntar-lhes: já foi a Cascais, Sintra, Óbidos? Já visitou os Jerónimos, a Batalha, os Palácios da Pena, Queluz, Mafra, já subiu aos Clérigos? A verdade é que eu moro em Cascais e também estava como eles em Veneza. And enjoying every minute, sem remorsos nacionalistas.

Só não contribuí para o negócio das gôndolas - a 50 euros por cabeça!, ó freguês vai uma voltinha?! Porque será que os coches de Sintra não têm a mesma procura? Também são românticos...

De resto, comportei-me como todos os outros turistas: fiz fotografias, usei chapéu de palha à gondoleiro para me proteger do sol abrasador, comprei bugigangas nas tendinhas e andei nos “cacilheiros” canal acima, canal abaixo, que lá se chamam vaporettos, mas que de ecológicos não têm nada, pois utilizam gasóleo poluente.

Jantei mal e paguei bem, no Rialto à beirinha d'água; e comi a melhor pizza (regada com Pinot Grigio) e o melhor tiramisu da minha vida nas tascas escondidas dos becos esconsos e estreitos, a fazer lembrar os bairros de Lisboa, com roupa pendurada à janela e tudo. A minha esposa guiava-se pelo olfacto, eu pelo ouvido: se a comida cheirava bem, e na sala se ouvia falar maioritariamente italiano com sotaque veneziano, então entrávamos. Follow the natives, é uma regra que resulta sempre.

Em Veneza, anda-se de barco ou a pé. E foi este segundo meio de locomoção sem destino marcado que me levou a desembocar inadvertidamente numa praça onde, na fachada de uma igreja marcada pela passagem dos séculos, se podia ver a seguinte placa de pedra:

Ir a Veneza e não assistir a um concerto de Vivaldi, é o mesmo que ir a Roma e não ver o Papa. A oferta é variada e os preços variam entre os 25 e os 35 euros.

Optei por um concerto daqueles para turista ver, no qual I Musici Veneziani - 6 mulheres e 1 homem - tocavam réplicas de instrumentos antigos e vestiam trajes do Séc. XVIII, com a cabeleira postiça de M. Anania Maritan, o solista virtuoso, em equilíbrio periclitante, ameaçando desabar nas passagens mais dinâmicas.

Depois de um jantar divino, nada melhor que um concerto sublime. Admito que o cenário, o guarda-roupa, o ambiente - e até o “grigio” fresquinho - terão contribuído para a minha apreciação global muito positiva. Mas o próprio Vivaldi, pese embora uma ou outra fífia ou entrada fora de tempo, teria gostado do que se ouviu na Scuola Grande di San Teodoro com direito a encore e tudo.

Primeiro ouviu-se um delicioso Concerto per archi e cembalo in Sol maggiore de Vivaldi, seguido do Adagio per archi e organo in Sol minore. A pièce de résistence, Le Quattro Stagioni, foi dividida em duas partes por um Canone de Pachelbel.


Saí de lá com uma convicção antiga ainda mais reforçada: Franco Serblin assimilou de tal forma o espírito dos grandes mestre artesãos Guarneri, Amati e Stradivari que as colunas da Sonus Faber (Arcugnano fica ali próximo) são as que mais se aproximam da reprodução integral da paleta tonal e o perfume harmónico dos instrumentos de corda tocados no seu habitat acústico natural, escutados no campo próximo e sem um microfone à vista. Nem o facto de o cravo ser electrónico (travestiu-se de orgão no Adagio de Albinoni), me conseguiu estragar a noite...