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2002

O Elo Mais Fraco



Carlos estava radiante. Tinha comprado um sistema AV com a artilharia toda: Pro Logic II, DTS ES, Dolby Digital EX, enfim, o último grito em parafernália electrónica da indústria japonesa, incluindo centenas de watts por canal, que um simples cálculo matemático deitaria por terra - uma fonte de alimentação daquelas nunca aguentaria tanta pressão, «digamos assim», como se diz agora de duas em duas palavras na televisão, digamos assim. Mas a matemática (e o Português...) nunca foi o nosso forte, pois não?
A cereja no bolo era, exultou ele, um leitor-Super Audio CD multicanal e dois discos, logo dois - os únicos que ele tinha ainda, aliás - que o vendedor, que era um entendido, lhe tinha oferecido.
Escudado na arrogância do equipamento novo, aproveitou para achincalhar a aparelhagem do amigo: uma coisa com uma marca esquisita, Krell ou lá o que era, que nem sequer tinha leitor de Super Audio CD. O pior foi quando soube o preço que ele pagara por «aquilo» tudo, só faltou rebolar-se no chão de gozo: «Foste enganado, meu! Por um quinto do preço posso ver DVD e ouvir CD, SACD e DVD-Audio».
Eu, por acaso, estava na casa do amigo dele nesse dia e ouvi tudo, calado. Apenas pensei com os meus botões: ando há anos a pregar aos peixes. Se o tipo tivesse ao menos lido dois ou três dos vinte artigos que já escrevi sobre o SACD nos últimos três anos, talvez não fizesse esta figura de parvo. Ou talvez não. Porque a iliteracia também é extensiva à escrita sobre áudio. Não basta ler, é preciso perceber. Talvez assim no estilo dos diálogos de Platão a mensagem passe.
O amigo comum, que começava a sentir-se inseguro, lá conseguiu interrompê-lo e balbuciar: «Aqui o Zé Victor escreve umas coisas sobre som em jornais e revistas e...».
«O vendedor disse-me que o SACD era a melhor coisa do mundo. E eu acho que a diferença é enorme em relação aos CD normais. Eu também tenho dois ouvidos...».
Eu sabia que isto ia acontecer. Tenho defendido o SACD neste espaço. Mas, embora o SACD contenha a cura para a digitalite de que sofre o CD, deve ser tomado com cuidado e por receita médica. A maior parte dos vendedores das grandes superfícies, mesmo as que se dão ares culturais, como foi o caso, também não sabe o que está vender. A formação profissional nunca foi o nosso forte, pois não?
Perguntei-lhe: «Para ouvir os dois SACD que lhe ofereceram em «surround» quais são as ligações que faz entre os leitor e o amplificador AV?». A resposta veio rápida: «Utilizo o cabo óptico, tal como para o som do DVD...». Apeteceu-me dizer-lhe na brincadeira: «Errado. Você é o elo mais fraco. Adeus.»
Os leitores SACD não têm saída digital. Ou melhor têm, mas para transmissão do sinal digital do DVD, quando são modelos híbridos (DVD/SACD), ou do CD quando o disco é híbrido (CD/SACD). Não é por acaso que o SACD é considerado o único formato anticópia do mercado. E muito menos quando são multicanal. As únicas saídas «válidas» são as analógicas (uma por cada canal: frente d/e, central, traseiro d/e + «sub»). Para ouvir o verdadeiro som «surround» multicanal de banda larga precisa de um amplificador AV ou prévio que tenha as respectivas entradas não-processadas. E, já agora, um sistema de «gestão de graves» (bass management). Além, claro, dos seis cabos de ligação com fichas RCA. Para o ano talvez já apareçam novos modelos com saídas «FireWire» ou «Ilink», mas isso é outra história que não cabe aqui - literalmente.
«Com um cabo óptico (ou coaxial, tanto faz), o que passa para o amplificador é o sinal PCM registado na camada que contém as faixas em estéreo (tal como se fosse um CD) dos SACD híbridos», expliquei. Se não acredita, tente reproduzir dessa forma um SACD que não seja híbrido (quase todos os editados no Japão pela Sony, por exemplo)», acrescentei.
«Ai, sim, então como é que eu oiço som nas colunas todas?...», abespinhou-se o amigo do meu amigo. «Elementar, meu caro Carlos. Todos os amplificadores AV da última geração têm algoritmos de processamento do sinal estéreo em «pseudosurround». O DTS-Neo e o Pro Logic II não passam disso mesmo. De facto, você não está a ouvir um SACD-multicanal, está a ouvir um CD em «surround». O vendedor vendeu-lhe gato por lebre por uma simples razão: ele também não distingue um gato a miar de uma lebre a correr. Neste caso, o som que ouviu foi o de um gato a miar. A lebre está lá escondida na toca mas é preciso aprender a caçá-la primeiro...».


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