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2005

Um Homem, Dois Sistemas: Stradivari+dartzeel



Os audiófilos adoram escalpelizar o som, uma mania a que os anglo-saxões chamam “splitting hairs”. É uma forma paradoxal de audição “fragmentada” da música, quando o objectivo declarado é obter um todo coerente: “Olha, aquela nota aguda ali parecia trazer um pouco de “zing” agarrado”, e seguem com o dedo em riste o seu decaimento no espaço acústico, como se de um meteoro se tratasse; “notei uma ligeira dureza na parte final do dó de peito”, e logo tentam imitar o que ouviram articulando sons que dão dó; “o médio-grave tem o colesterol um pouco elevado”, segue-se o gesto de quem acaricia umas ancas generosas; “senti timidez na última oitava do grave profundo, que se ficou nas covas, e não deixou entrar o pedal do organista”, e esticam o pé como quem trava. Passam horas nisto, sob o olhar tolerante das esposas, mudando os discos a cada minuto que passa.
O sótão do Jorge junto ao mar (ver in Brinquedos no sótão)


Jorge é um audiófilo que, quando está de férias junto ao mar, gosta de ouvir um sistema repousante, que não o obrigue a pensar muito: Linn Sondek, Prologue One, Sonus Faber Concerto (ver “Brinquedos no sótão”), os discos sucedendo-se no prato do gira-discos sem que paradoxalmente o “som” interfira na música. Contudo, sendo também médico, tem um espírito analítico, ainda que considere a sua especialidade - a anestesiologia - uma arte.


Foi esta dicotomia ciência-arte que ditou a escolha do seu sistema de som principal: um amplificador DarTzeel, que analisa a música com a precisão da tomografia axial computorizada, sem nunca perder a noção que cada nota faz parte de um corpus sonoro, alimenta um par de Sonus Faber Stradivari, as únicas colunas de som com anima, produzidas por mestre Franco Serblin, em Arcugnano, perto de Veneza. (ver em Artigos Relacionados reportagem em língua inglesa).
Sistema principal: Audio Research CD3+Stradivari+Darzeel


Jorge vive perto de Aveiro, a nossa piccola Venezia, num apartamento onde duas “esculturas” de Pedro Cabrita Reis, cuja obra deixou os visitantes da Bienal de Veneza tão perplexos quanto eu, reforçaram a minha convicção de que a serenidade budista deste médico, que tem o dom de nos “ressuscitar” da morte breve, esconde o desejo de encontrar a resposta para o maior mistério da vida: o da eternidade da alma face à caducidade do corpo. A negação da meta-existência da arte, a fragmentação como forma de representar a eternidade e a inacessibilidade (das escadas também) de Cabrita Reis, são elementos comuns ao universo audiófilo, onde a busca do inatingível Graal Sónico se realiza através de diferentes conceitos de estética musical - nem sempre os mais ortodoxos.


Ouviu-se o saxofonista James Carter, “To My Wife's Beautiful Eyes”, a alma negra do jazz glorificando a beleza da mulher. Outro Carter, este o baixista Ron, acompanhando a brasileira Rosa Passos, num disco cujo título não podia ser mais apropriado, “Entre Amigos”: bossa nova profana e sensual. E também música cantada em francês por Dee-Dee Bridgewater, com um acordeão dolente que ilustra les jeux amoureux.

Foi um reencontro feliz com as Stradivari sobre as quais escrevi algumas das páginas mais emotivas da minha longa carreira de crítico de áudio:


“Há outras colunas capazes deste realismo impressionante. Contudo, tal como as figuras de cera de Madame Tussaud, causam-nos um profundo mal-estar: falta-lhes a alma, como aos cadáveres na pedra fria da morgue. As Stradivari têm alma, e talvez por isso o som é tão “humano”. Com tudo o que isso implica de bom e de mau. Ou não fosse a imperfeição parte integrante da nossa condição de anjos caídos.


Sempre que tento “analisar” o som das Stradivari, entro em processo de introspecção, e acabo a analisar-me a mim próprio: que doce prazer é este que me inunda a alma de música? O grave podia ser menos «anafado» e o médio-agudo de arestas menos boleadas? Os registos médios são cremosos ao ponto de nos fazer temer uma subida do colesterol? Que interessa tudo isso quando, intrínseco ao próprio acto de soar, os instrumentos parecem ter o tal elemento de “humanidade”, como se o músico fosse parte integrante da sua estrutura?...


Vi num filme recente um violoncelista tentar ensinar uma jovem a tocar: “Só aprenderás a tocar o violoncelo quando ele fizer parte de ti: feel it, touch it, have sex with it...”. As Stradivari fazem amor com a música, e é isso que nos excita e dá prazer, a nós, audiófilos, que tanto nos comprazemos no «voyeurismo» da audição.


O sexo tem uma conotação animal, instintiva portanto, que a tradição da cultura judaico-cristã transformou em pecado. Contudo, num plano espiritual mais elevado, o sexo é também a busca da «morte-a-dois»: a fusão de dois seres de sexos diferentes, que está na origem da divindade suprema, a Sophia Mater da cultura cátara. As Stradivari fundem-se - e confundem-se - com a música, e nós com ela, num irresistível ménage à trois. Ouvi-las é um pecado de que não peço perdão a Deus, porque me fazem sentir mais perto d'Ele.”

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