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2003

Ao Ritmo Do Coração



O crítico não ama de facto os aparelhos que testa, limita-se a «flirtar» com eles, sob o jugo da lógica esquizofrénica de «flavour of the month» das revistas da especialidade. Por vezes, o que era um «flirt» sem consequências torna-se uma obsessão. Vivo com o DAC64 há seis meses e não resisti a pedir a sua mão em casamento ao Francisco Brito, da Alfida. Vou ter que pagar o dote, claro.


O que tem o DAC64 que os outros não têm? Memória - literalmente. E alma.
O DAC64 utiliza a tecnologia «pulse array» de conversão digital desenvolvida por Robert Watts: 2048x oversampling, processamento matemático de 64-bit, filtro de sétima ordem, etc.


Watts é um génio. Mau gestor como todos os génios. As suas marcas: Deltec, DPA, «Watts» nasceram belas como flores silvestres - murcharam depressa. John Franks, da Chord, apanhou este ramalhete de ideias de Bob Watts e colocou-as na jarra do seu pragmatismo comercial. Mantêm-se frescas.


A caixa em alumínio do DAC64 tem a beleza sólida de um sarcófago futurista. Uma janela circular iluminada permite-nos ver, não o corpo criogenizado do defunto, mas o fogo fátuo da alma, que muda de cor conforme o estado de espírito do sinal: âmbar com vagas nuances de verde quando em repouso; púrpura quando lhe pressente a presença, ruborizando-se de vermelho vivo quando lhe falha a memória (comutador para cima).
O DAC64 não é compatível com todos os transportes digitais dos leitores-CD (o Marantz CD-63, por exemplo), muito menos com os utilizados em alguns leitores-DVD. Recusa-se a efectuar o «locking», quando o «jitter» é excessivo. E, ao fim de meia-hora de inactividade, entra em estado de letargia do qual só sai se o desligarmos da corrente de sector durante 30 segundos! Pelo sim, pelo não, convém conferir as compatibilidades: as suas e as do seu equipamento complementar.


O DAC64 tem ainda outra idiossincrasia ao mesmo tempo estranha e deliciosa: a conversão pode ser directa ou passar por uma memória RAM («buffer») que atrasa o sinal de um a quatro segundos, enquanto faz o «reclocking» (first in first out), com a inerente redução drástica do «jitter» e os consequentes benefícios audíveis; na prática, o som só «sai» quatro segundos depois de «entrar», com os «bits» todos em «fila-indiana», como um exército de formigas ordeiras e disciplinadas: ninguém passa à frente de ninguém neste carreiro digital. Apesar de tudo, os cabos continuam a fazer diferença: o Nordost Valhalla digital é um milagre tecnológico - e como isso se revelou fundamental para a fruição da música...


As comparações A/B obrigam assim a sincronização prévia: atrase o outro disco 1s a 4s conforme a posição seleccionada da RAM. Por outro lado, esta «memória de elefante» tem o efeito secundário mágico e desconcertante de se continuar a ouvir uma faixa alguns segundos depois de seleccionar outra, ou até mesmo depois de abrir a gaveta. Com o transporte do Krell KPS25c, cheguei a ter o disco já na mão e, pasme-se!, continuei a ouvi-lo tocar! Luís de Matos não faria melhor...


O DAC64 só parece soar bem com a memória comutada: apenas hesito entre a aparente maior resolução, presença e dinâmica da posição intermédia de 1 s. e a lasciva sensualidade das imagens «maiores-do-que-a-vida» dos 4 s. A razão vota na primeira, o coração na segunda. Já a conversão directa é banal, e não justifica o investimento face à concorrência: o som perde tridimensionalidade.


Por milagre, a empatia entre o DACD64 e o transporte do meu Denon DVD-5000 é quase perfeita, se exceptuarmos uma ligeira hesitação no início do disco. O DVD-5000 é, aliás, dos poucos que «deixa passar» sinais a 96kHz sem os truncar para 48kHz. Mas nem sequer foi esta capacidade do DAC94 de converter também sinais a 96kHz, hoje tão vulgar, que me convenceu. Segundo Franks, vai até aos 192kHz: tenho as minhas dúvidas que o consiga com cabo coaxial simples, mas enfim, ele lá sabe (é necessária um dupla entrada AES/EBU ou BNC, como a do dCS Elgar).


Em termos puramente técnicos, o som do DAC64 não será o melhor que já ouvi a partir do CD; mas é, sem dúvida, algo de excepcional em termos de envolvimento emocional. O DAC64 restabeleceu a confiança que tinha perdido no CD com o advento do Super Audio CD. E não é afinal esta busca incessante pelo graal sónico que me faz correr há vinte anos?


Numa primeira análise, o DAC64 soou-me quente, encorpado nos registos médios (ah, as vozes!..), ligeiramente redondo no agudo e com graves cheios, algo anafados, compensando em certa medida a aridez do som do CD e a alegada frieza mecânica das Martin-Logan. A resolução, o detalhe ínfimo, a solidez e extensão dos graves, a riqueza harmónica, até a iluminação no fundo do palco sonoro e a sua extensão não atingiam o nível da referência, (o Krell KPs25c). Com o tempo, ou o hábito (o amor nasce da convivência, diz-se), o Chord DAC64 mostrou a sua verdadeira personalidade: a coerência tout court - temporal e não só.


A música não são só notas, são pausas também. E com as pausas não se brinca: pergunte a qualquer maestro. O DAC64 respeita-as religiosamente: não coloca notas onde devem estar pausas e vice-versa. É este acordo tácito que determina o ritmo e a dinâmica, aqui entendida também como energia, compasso, equilíbrio, balanço. Numa palavra: a respiração ora pausada, ora ofegante da música faz-se em função das solicitações do caminho. E não é caminhando que se faz o caminho?


Notas? Sons? Frequências? Qualquer computador identifica uma voz humana pela análise do espectro. Mas pode ele adivinhar nas pausas, nos silêncios, o amor, a felicidade, a angústia, o ódio, o medo, a raiva, a dor? Como pensa que as mães reconhecem o choro dos filhos na maternidade? Com o ouvido ou com o coração?...


O Chord DAC64 tem esse raro dom de reproduzir a luz interior que emana dos próprios intervenientes envolvidos no processo musical, como uma aura de santidade, só detectável pelos iniciados, que os individualiza física e espiritualmente, revelando a sua presença e a força dos seus sentimentos. Convém não confundir a discreta claridade que inunda o palco sonoro com falta de transparência. É uma claridade morna de fim-de-tarde, que dá corpo e volume às formas que a habitam, prolongando-lhes as sombras de harmónicos, como num quadro de El Greco.


Só me resta especular: na natureza, não são afinal os sons que contam mas a sua carga emocional. No «Ground Zero», em NY, podia ler-se num cartaz o seguinte aforismo: o carácter humano não se mede pela grandeza do feito, mas pela grandeza do coração. O coração do Chord DAC64 é do tamanho do mundo. E brilha no escuro - como as válvulas...



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