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2008

A Cidade Luz Do Deserto



É possível divertir-se em Las Vegas durante uma semana sem jogar um único dólar nos casinos, isto se lograr abstrair-se da fonte de ansiedade que constitui o desvario de gentes em filas intermináveis que apesar de tudo se movem e a lagarta gigante de táxis e autocarros que mais tarde ou mais cedo acabam por nos levar ao destino nesta Babel inacreditável:
A nave Enterprise paira sobre o casino


“No Space Casino do Hilton, pago 9 dólares para visitar o museu “StarTrek”: guarda-roupa, adereços, armas futuristas, naves espaciais, seres estranhos de outras galáxias. De repente, o elevador parece ter um problema técnico: escuridão, turbulência, faíscas, fumo, alarme de descompressão. As portas abrem-se e, quando o fumo se dissipa, dou comigo no ano 3 mil e tal, na torre de comando da nave Enterprise (cópia exacta da original no estúdio onde a série é gravada).


O Comandante pede desculpa pelos problemas técnicos e promete que vai tentar levar-nos de volta ao século XX. Um membro da tripulação, que diz ser estudante de arqueologia, interessa-se pela minha máquina fotográfica e propõe comprá-la. Pudera, um aparelho em bom estado de funcionamento, já com mais de mil anos!... Somos, entretanto, informados que os terríveis Kligons pretendem raptar-nos para nos utilizar como moeda de troca.

O shuttle da fuga aos Kligons



Embarcamos à pressa num shuttle salva-vidas a caminho da Terra, sendo perseguidos pelos maus da fita que não querem largar a presa: fugindo ao bombardeamento com raios laser, mergulhamos no vazio negro do espaço sideral, subimos ao luminoso infinito de galáxias distantes, passamos por planetas fantásticos com naves pairando na sua órbita, e por pouco não somos destruídos por uma caça Kligon que passa a rasar as nossas cabeças à velocidade da luz. In extremis, safamo-nos por um buraco do tempo, e em voo planado e suave sobrevoamos já a cidade de Las Vegas, circa 1998, iluminada como uma árvore de Natal.”

Interior do casino a imitar uma nave espacial



Este excerto faz parte da reportagem da CES 1998, publicada na integra no DN. Este ano voltei lá, até porque o Space Casino fica no percurso para o monocarril e eu aproveitei para ir fazer um chichi na nave Enterprise que, felizmente, não tem ausência de gravidade, o que dificultaria este simples acto fisiológico.
O casino temático Startrek tinha pouca gente, talvez porque os jogadores já andam com a cabeça suficientemente na Lua e preferem o ambiente clássico e mais luminoso do Hilton, no qual está integrado. De resto, nada mudou e senti-me de novo como se tivesse viajado no tempo: já passaram dez anos! Como?...

Exemplar de Quark mumificado em exposição


Desta vez, não arrisquei embarcar no simulador e navegar de novo no espaço sideral, não fosse a al-Qaeda já ter instalado lá em cima uma célula activa, mais eficaz que os caças Kligons, dos quais tinha escapado ileso há dez anos; nem bebi cerveja azul, limitei-me a fazer as fotos da praxe para poder partilhar aqui com os leitores que são fãs da famosa série de ficção científica. A propósito, com aquelas orelhas, o Dr. Spock devia ter bom ouvido para a alta fidelidade onde muitos dos ouvidos de ouro são, afinal, de latão...


In DNA, Fevereiro de 1998



A TERRA PROMETIDA


“Las Vegas é a cidade de maior e mais rápido crescimento dos EUA: a população duplica a cada dez anos. Os hotéis crescem como cogumelos e surgem como miragens recortando-se luminosos no céu negro da noite de breu do deserto. O ar seco e limpo dá-nos a falsa ilusão de proximidade - parece que tudo fica já ali...
Aos Sábados à tarde, turistas de todas as idades e origens inundam os largos passeios de Las Vegas Boulevard - mais conhecida por “Strip”. Não é só a arquitectura fantasista dos principais hotéis que os atrai, é antes os espectáculos de rua gratuitos: a batallha naval do Treasure Island, com tiros, fogo de artifício e barcos de três mastros ao fundo; ou a telúrica e luminosa erupção do vulcão do Mirage, a que se junta a dança dos repuxos de Bellagio.


“Lá vai o rebanho para a próxima pastagem...” comenta chocarreiro o taxista que nos transporta para o hotel convencido que somos russos. “Topei-os logo pela maneira de falar...”. Na rua há gente de todas as cores, feitios e desvarios: vestidas a rigor, de shorts e chinelas ou em fato de treino, sozinhos, aos pares ou com crianças pela mão e às cavalitas, estremunhadas pelo sono da viagem, sorvendo absortas cocacola entre dentadas comunitárias em hambugueres gordurosos, fatias de pizza e outras frituras avulsas, que entopem as artérias dos pais e traçam logo na infância o destino de obesidade mórbida dos filhos.

O vulcão do Mirage em erupção


“O pior ainda são os tipos que param no meio da via para ver a merda do vulcão”, praguejou o taxista: “fucking volcano shit...”, no colorido linguajar local. Eu tinha dito que estava com pressa ao entrar no táxi: “Ain't we all”, respondeu ele, sabendo de antemão que eu não me arriscaria a negar-lhe a gorja no final da corrida. Uma vez, não tinha mais moedas e sai do táxi sem receber os 20 cêntimos de troco. O taxista atirou-me com os 20 cêntimos às costas: “Take the fucking 20 cents and put them up your ass...”.


Quando o vulcão do Mirage entra em erupção, o que acontece a cada 30 minutos, tudo petrifica em redor como em Pompeia. Esguichos de água cor de lava incandescente, iluminados por poderosos holofotes, e chamas alterosas, produzidas por jactos de gás, elevam-se uma dezena de metros entre ahs e ohs de júbilo e admiração. O fabuloso sistema de som primeiro reproduz os batuques da selva e os sons dos animais assutados, depois a revolta dos intestinos da terra, abafando em redor os arrotos carbónicos dos espectadores.


A CES, ou a “Convention”, como toda a gente lhe chama, injecta nos percursos turísticos da cidade mais de 100 000 visitantes extra, que se juntam ao povão que come até se fartar nos buffets dos hotéis por dez dólares a cabeça, onde deglutem sem remorso toneladas de alimentos regados com champanhe rasca e coca-cola morna, a maionese e o ketch-up a escapar-se pelos cantos da boca, saindo depois a rebolar como detritos não tratados até desaguarem no mar de gente que enche as salas de jogos.Na mesma mesa de jogo, confraternizam casais vestidos por Armani e pela Nike. Aqui o estatuto é aferido apenas pelo nível de aposta.
O Hotel Ceasars's Palace brilha na noite escura do deserto


Os bons restaurantes já são mais exigentes na apresentação. No Bacchanal at Ceasar's Palace, somos recebidos por Cleopatra e Júlio César. Seis pratos por 60 dólares e um beijo da Cleópatra. Que mais se pode desejar?...
Cleopatra recebe os convivas em pessoa...


Em Las Vegas, assiste-se hoje à tentativa de reconstituir no deserto o clima ameno do sul de Itália, ou o ambiente cosmopolita de Monte Carlo e Paris (com Arco de Triunfo, Torre Eiffel e tudo!...), para compensar o turista americano assustado demais para voar com todas as ameaças sarracenas que pairam sobre a sua cabeça.

A réplica da Torre Eiffel (1/3 do tamanho da original) é a principal atracção do Hotel Paris



Até aqui o jogo de luzes no palco feérico da noite fazia parte da máscara de Las Vegas, qual maquilhagem de barmaid entradota (e algumas já passaram os 70 anos, juro!...) a tentar disfarçar os anos sem sono. Mas sob o sol inclemente do deserto, a magia desvanecia-se e o turista percebia logo que tudo não passava de um cenário.

O lago dos repuxos dançantes do Hotel Bellagio


No Hotel Bellagio, é tudo verdadeiro: os mármores, os granitos, as flores e até os pinheiros, laranjeiras e oliveiras! No Olive's, um dos bons restaurantes com vista sobre o lago dos repuxos dançantes, janta-se como em Itália: azeitonas, azeite para molhar o pão, fetuccini, raviolli, scampi, robalo com molho de ostras, tudo regado com Chianti, e um tiramisu com café expresso para finalizar. Nas galerias sucedem-se as lojas exclusivas dos melhores costureiros italianos e franceses; enquanto no teatro se pode apreciar “O”, pelo Cirque du Soleil, um espectáculo deslumbrante e fantástico, onírico e surrealista, com um palco que ora é terra e fogo ora é água.


Será Las Vegas a Terra Prometida ou a tentação do Diabo no deserto aos pobres de Cristo?...”


in DNA, 06 de Fevereiro de 1999


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