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2000

O Mistério Do Forte De S.filipe - Parte 2



A AUDIÇÃO: CD VS LP


O sistema dispunha de fonte analógica, o notável gira-discos Basis Debut 2500 II; e digital, o leitor-CD SimAudio Moon Eclipse. O primeiro prato foi sempre digital (CD), seguindo-se depois a doce sobremesa do analógico (LP), ambos obtidos a partir da mesma matriz.

Iniciou-se a função com Hotel California, dos Eagles. O excesso de graves era óbvio, como graves eram as culpas do labirinto de corredores das masmorras que iam desaguar livremente em dois pontos da câmara de audição, excitando assim alguns dos modos de baixa frequência da sala improvisada. Em consequência, os registos médios soaram-me algo recuados, tímidos até na presença, e algo renitentes no ataque; o agudo pautou-se como doce e informativo. A opção por colocar as colunas com os supertweeters do lado-de-fora parecia favorecer a abertura da boca do palco sonoro em detrimento da focagem.

Contudo, já era possível distinguir com relativa facilidade a superioridade do LP sobre o CD. Um bom augúrio, pois indiciava que as Harpa tinham poder de resolução e ausência de colorações e desvios de fase.

Do ar que vibrava dentro das congas e da miríade de harmónicos produzidos pelas diferentes guitarras, à voz de Don Henley, tudo era mais musical, natural e emotivo no LP, incluindo o bruáa dos aplausos no final da peça. Era evidente que as Harpa tinham sido afinadas de ouvido com recurso a LPs. Luís Pires exibia um sorriso cúmplice.

Com Roots Revisited, de Maceo Parker, algo de extraordinário aconteceu. Ou porque o sistema entretanto aquecera; ou porque eu desloquei a minha cadeira para um ponto onde o reforço de graves ditado pela acústica não se fazia sentir tanto; ou porque o cérebro, essa maravilha criada por Deus, se adaptou, esforçando-se por esquecer os defeitos e concentrando-se apenas nas virtudes, a faixa Children of the World deixou-me rendido às qualidades sonoras das Harpa. Os graves continuaram pesados, é certo, mas ganharam articulação, definição e tensão e o recuo dos registos médios passou a soar agora mais como uma opção deliberada e inteligente do que uma omissão. O agudo mantinha a doce ilusão de continuidade e o manancial de microinformações indispensáveis para recriar o evento original.

Uma vez mais, foi o LP que ganhou com uma mão atrás das costas (e estamos a falar de um bom leitor-CD), o que nos leva a especular sobre o que andámos a fazer das nossas vidas audiófilas nos últimos vinte anos. A música era a mesma, e admito que a tarola até soou mais seca e tensa no CD e os pratos e a guitarra mais vivos, mas há uma coisa que o CD, neste caso particular, não nos deu: subjectivamente, a emoção contida em cada nota do sax-alto de Maceo Parker, em acesa disputa com o sax-tenor de Pee Wee Ellis; objectivamente, a noção exacta de que cada um dos instrumentos foi gravado numa cabina diferente: o som do ar que envolve os dois músicos é acusticamente distinto, assim como o que envolve os outros intervenientes no processo musical.


No LP ouve-se o que no CD apenas se adivinha. Experimente comparar.



A SUPRESA DE CAROLINA


Carolina, que entretanto se juntara ao painel de ouvintes, e não sabia que o som também pode ter bouquet como o vinho, não queria acreditar no que ouvia. Depois da noção aprendida de ar que envolve os músicos, Kari, a Ute Lemper nórdica, foi a revelação final: não só era melhor a colocação da voz, era-o também a dicção e, fundamentalmente, a intenção, algo que o LP transmitia e o CD escondia, ou pelo menos resguardava, a tal ponto que suspeito, neste caso, de uma má transcrição da matriz.

Buena Vista Social Club só veio confirmar o que fica dito, com Rúben Gonzalez e Compay Segundo a saltar do LP para o chão de pedra do palco sonoro. Vivos - e ao vivo. O CD soava como um clone. Liofilizado.



O PÔR-DO-SOL


O sistema estava a tocar tão bem - e com ele as Harpa -, que só o frio - e com ele o arrepio... - nos fez sair lá de baixo, ainda a tempo de aprender que o sol, quando se põe, não é igual para todos: pode ser visto do Forte de S. Filipe, descendo majestoso e quente sobre o verde da serra da Arrábida; ou aos quadradinhos através das grades das masmorras.

O sol é o mesmo, o contexto é que é diferente. Há também quem oiça som aos quadradinhos, pensando que é livre, só porque tem um controlo remoto na mão...


Quem matou o LP devia ser condenado a cem anos de prisão, tantos quantos os anos que levou a aperfeiçoar o gira-discos. Eu, que só uso CD, sou cúmplice do crime. Mea culpa.


Nota: texto original publicado no DNA em 2 de Outubro de 2000

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