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2005

Audiófilos Vs Melómanos




No fundo, apenas os distingue o objecto da obsessão: as aparelhagens de som ou os discos, ainda que ambos sejam elementos comuns e necessários à prossecução dos diferentes objectivos. Conheço audiófilos com vastas colecções discográficas e melómanos com razoáveis sistemas de som. Mas são a excepção e não a regra. Os primeiros tentam educar o ouvido na pureza do timbre em resultado da tecnologia utilizada para reproduzir o som dos instrumentos; os segundos comprazem-se sobretudo em apurar qual a melhor interpretação de uma determinada peça musical.



PAVAROTTI


Curiosamente, os músicos, que na cadeia hierárquica estão mais próximos do criador, não são nem audiófilos nem melómanos. Numa longa entrevista de carácter biográfico sobre Pavarotti, transmitida pela televisão há cerca de dois meses, constatei com surpresa que o cantor prefere os discos de ouro e platina aos propriamente ditos (não gosta de se ouvir); e que outros entrevistados, nos quais se incluiam o seu ex-agente e Bono, dos U2, ambos habituados a ouvi-lo cantar ao vivo, utilizaram uma inenarrável “aparelhagem” para reproduzir os discos de Pavarotti que faria vomitar qualquer audiófilo que se preze, pois não lhe reconheceria capacidade dinâmica para reproduzir sequer um “dó de peito”, ou a oitava inferior da sua poderosa voz de tenor. Para já não falar no timbre. E no entanto, era patente o enlevo posto na audição.



DIZ-ME O QUE OUVES


Enquanto os audiófilos fazem colecção de gira-discos, leitores-CD, amplificadores, cabos e colunas de som na busca do inacessível Graal Sónico; os melómanos coleccionam todas as edições conhecidas das “Quatro Estações” ou da “Tosca” na busca da inefável interpretação perfeita. Se bem que se conheçam as variantes do audiófilo-construtor (DIY), que gosta de “construir”, “ transformar”, “tweakar” a sua própria aparelhagem; e do melómano que se dedica simultaneamente a estudar música e a aprender a tocar um instrumento, em ambos os casos não há criação, há apenas reprodução.



WIM MERTENS


Numa notável entrevista (em francês) de Ana Sousa Dias a Wim Mertens, por ocasião da sua vinda a Portugal para apresentar o seu sexto disco “Un Respiro”, o músico e compositor belga, quando questionado sobre a arte de Alfred Brendel, respondeu, e cito de cor o sentido da sua resposta: “É agradável mas não passa da reprodução mais ou menos perfeita de algo pré-existente: não há criação no acto de interpretação».


Neste contexto, os críticos de áudio e discográficos são músicos duplamente frustrados: não criam nem reproduzem, limitam-se a opinar sobre criação e, sobretudo, reprodução alheia. Ora, como quase tudo o que se produz actualmente é mera reprodução, o objecto da crítica é de tal formar redutor que os críticos acabam a escrever sobre o seu próprio umbigo.



O GRAU ZERO DA MÚSICA

Dylan (capa de Highway 61 revisited), no tempo em que consciência política e consciência musical se confundiam



Há vinte anos escrevi um texto, então publicado no semanário Êxito, que não perdeu actualidade, e de que passo a transcrever (reproduzir?) algumas passagens:


“A riqueza musical da década de 60 é o resultado da identificação entre consciência artística e consciência política. O principal problema da actual música popular é, pois, de identificação. A juventude, única fonte de inovação constante, sofre de saudável (?) inconsciência política, pelo que está indefesa perante as técnicas de “marketing” agressivas, que a induzem a aceitar como inovadora uma “consciências artística” do passado, à custa de malabarismos formais e de esvaziamento temático e cultural do projecto original. Há um desejo frenético de dizer de uma forma que se pretende diferente aquilo que já foi dito melhor por outros num contexto em que ainda fazia sentido.
(Nota: mal por mal antes a actual moda das reedições de originais)

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A música popular, antes tão rica de referências e mensagens, tornou-se assim num mero exercício formal, um conjunto rítmico de significantes sem significado; uma linguagem axiológica, que gira em torno de si própria; uma Forma-Objecto, que Roland Barthes, se fosse vivo, não hesitaria em classificar como “o grau-zero-da-música».


Vinte anos depois pouco mudou. À mingua de projectos inovadores, a crítica repete-se ao ritmo da reprodução. Para variar eu proponho que, à semelhança do que sucede lá fora, os discos tenham, além da classificação musical, uma classificação técnica. Pelo menos esta é mesurável e objectiva. E tem a virtude de juntar finalmente, no barco à deriva que é o mercado discográfico: audiófilos e melómanos...


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