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2005

E Hollywood Aqui Tão Perto...




Antes de ser audiófilo fui cinéfilo. Quando era miúdo, não perdia uma matiné, aos Domingos, nos Salesianos do Estoril. Dizíamos: fui ao cinema aos padres. Para ter acesso à galeria de preço económico, primeiro tínhamos de ir à missa. E quem não se portasse bem na fila levava com o cabo da sineta na tola. O pior era o trajecto da capela até ao “piolho”: os primeiros a chegar tinham acesso aos melhores lugares, e quem se atrasava ficava na rua. Duzentos metros que se faziam em louca correria, num atropelo imortalizado no filme “Os cavalos também se abatem”. Daí a importância de se garantir a “pole-position” na capela: a fila da frente era a primeira a sair ordeiramente após a missa. Os padres de serviço sabiam disso e divertiam-se imenso mandando sair as filas de forma aleatória. Eu era pequeno e franzino e, se não saísse logo a seguir ao ámen, não tinha qualquer hipótese de chegar a tempo para ver as aventuras de cobóis e índios que justificavam o dia santo. Assim, passei a convidar um primo meu, um matulão que me arrastava pelo braço, derrubando os ímpios que se atravessavam no nosso caminho, com verdadeiro espírito de cruzada e comportamento pouco cristão, mea culpa. Cada filme era pois uma nova aventura. No Domingo seguinte, confessava o pecado de conseguir ver os filmes todos na primeira fila do “piolho”. Até que passaram a mandar-nos sair separados da capela. Informação privilegiada?...



Cá em baixo na plateia, sentavam-se os filhos família. Quando ia com a minha mãe, também via o filme da plateia. No máximo uma vez por mês, que a vida estava difícil, ouvia-lhe dizer com um sorriso triste. Mas não tinha metade da graça. Antes do filme começar passava o tempo a tentar adivinhar quem teria chegado primeiro, enquanto eles lá de cima, reconhecendo em mim o desertor, faziam caretas e gestos obscenos, apesar do elevado risco de serem expulsos arrastados por uma orelha antes do filme começar, a que se seguia um par de estalos lá fora com apenas Deus por testemunha. Quando as luzes se apagavam, a malta lá assumia a devida atitude de silêncio religioso: o respeitinho era muito bonito naquela época. Com uma ou outra manifestação de entusiasmo juvenil, quando o americano John Wayne dava o exemplo impondo respeito aos índios ao murro, ao tiro e ao pontapé. Plus ça change...


Hoje não há “piolho”. É tudo muito democrático: a malta paga o bilhete, entra e senta-se onde quer, sem ter de lutar pelo lugar (as salas estão vazias), com o balde de pipocas e a coca-cola a entornar por cima dos que já lá estão. Conversam antes e durante o filme, atendem o telemóvel aos gritos e dão pontapés nas costas da nossa cadeira, obrigando-nos a mudar de lugar. Ou saem a meio porque entretanto combinaram uma “cena” diferente. E crianças de colo a ver filmes violentos. E a publicidade. A mesma com que nos massacram na TV agora em tamanho gigante, numa berraria infernal com imagem má e som mal afinado. Ou então fui eu que me tornei snob. Não admira que muitos cinéfilos prefiram o Corte Inglês, onde parece que ainda se respeitam os espectadores. At a premium price, por supuesto…


Com os bilhetes a 5 euros, uma família média gasta, entre gasolina, hambúrgueres, pizzas e colas, 50 euros para ir ao cinema. Dá para ver 20 DVDs alugados no clube do bairro. Isto nas famílias de educação cristã porque as outras compram DVD-pirata de origem espanhola, presupuesto, pelo preço do aluguer. E vão ao cinema-em-casa, onde estão em relativa segurança, longe do fisco, dos arrumadores, dos passadores e dos estertores sociais da turba malta da periferia. Que lhes apontam seringas, bastões, facas e pistolas; os ameaçam, agridem e humilham e lhes roubam carteiras, telemóveis e carros. Sem pressa porque ninguém esboça um gesto solidário. E a polícia encolhe os ombros: são menores, sabe?...


Só eu sei por que fico em casa. Acabei de montar um projector Hitachi PJ TX200 e o novo leitor-tudo-em-um Linn Classik Movie (testes em preparação), que integra num único chassis leitor-DVD/CD, pré/amp multicanal, processador Dolby e DTS e sintonizador AM/FM. O som é um espanto, a imagem outro tanto (mesmo c/ S-VHS), a cadeira é confortável, o silêncio é total; não se sentam estranhos ao meu lado a arrotar gàs carbónico e carne picada com cebola, o intervalo é quando eu quiser e posso beber uma cerveja ou duas porque o carro está na garagem. A salvo da polícia e dos ladrões. Agora só falta o golpe de misericórdia: filmes em Blu-Ray de alta definição. O fim está próximo.


E contudo sinto a nostalgia do ritual da ida ao cinema. Na paz do Senhor.

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